Reflexão sobre a Pastoral da Ecologia Integral no Estado de São Paulo - Dom Eduardo Malaspina

Reflexão sobre a Pastoral da Ecologia Integral no Estado de São Paulo

Dom Eduardo Malaspina

Bispo Diocesano de Itapeva

Referencial para a Pastoral da Ecologia Integral 

Introdução: Um Chamado Urgente em um Momento Singular

O décimo aniversário da Encíclica Laudato Si’, promulgada pelo Papa Francisco em 24 de maio de 2015, e a preparação para a Campanha da Fraternidade de 2025, dedicada à Ecologia Integral, marcam um momento histórico singular. Estes dois marcos convergem para interpelar sobre uma questão fundamental: qual resposta tem sido dada à questão da Ecologia Integral que ressoa em cada canto do Estado de São Paulo?

A advertência do Papa Francisco de que "crescemos pensando que éramos os proprietários e dominadores do planeta, autorizados a saqueá-la" não configura apenas um diagnóstico global, mas toca numa ferida que sangra particularmente no estado paulista.

O Paradigma Tecnodominante e a Realidade Paulista

São Paulo, com seus 46 milhões de habitantes distribuídos em 645 municípios, concentra as maiores contradições ecológicas e sociais do Brasil. No coração econômico da nação, desde a região metropolitana da capital até os vastos campos do interior, do litoral às fronteiras com Minas Gerais e Paraná, manifesta-se de forma dramática o que o Papa denomina "paradigma tecnocrático dominante". Este modelo de desenvolvimento tem produzido riqueza e pobreza simultaneamente, progresso e devastação em proporções alarmantes.

O estado, estendendo-se por mais de 248 mil quilômetros quadrados, tornou-se um laboratório complexo do "crescimento desmedido e descontrolado" descrito na Laudato Si

Na região metropolitana da capital, 22 milhões de pessoas enfrentam poluição, caos urbano e problemas de transporte.

No interior, cidades médias crescem desordenadamente, enquanto pequenos municípios rurais enfrentam o êxodo populacional e a concentração fundiária.

No litoral, a especulação imobiliária devasta a Mata Atlântica.

No oeste paulista, a monocultura extensiva compromete a biodiversidade do Cerrado.

Percorrendo o território paulista, das periferias da Grande São Paulo aos assentamentos rurais do Pontal do Paranapanema, das praias do litoral norte às plantações de cana do interior, constata-se que, em muitos lugares, as pessoas vivem privadas do contato saudável com a natureza.

As Escolhas por Trás da Degradação

Esta realidade não é neutra nem acidental. É fruto de escolhas, de um modelo de desenvolvimento que privilegia o lucro sobre a vida e a especulação sobre a dignidade humana. Em todo o Estado de São Paulo, assistem-se diariamente aos impactos deste modelo:

Nas grandes cidades: privatização de espaços verdes e criação de condomínios "ecológicos" para poucos privilegiados.

Nas periferias urbanas: falta de saneamento básico e proximidade a aterros sanitários.

No campo: contaminação por agrotóxicos e expulsão de pequenos produtores.

No litoral: destruição de manguezais e restingas para empreendimentos turísticos.

Nas regiões de mineração: degradação de nascentes e cursos d água.

A Conexão Inegável: Degradação Ambiental e Pobreza

A conexão entre degradação ambiental e pobreza não é coincidência, mas consequência direta da "cultura do descarte", como aponta o Papa Francisco. Citando os bispos da Bolívia na Laudato Si’, reforça-se que "tanto a experiência comum da vida ordinária como a busca científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais os sofrem as pessoas mais pobres".

No Estado de São Paulo, esta verdade manifesta-se de forma contundente:

Nas favelas da capital, construídas sobre córregos poluídos.

Nos bairros operários de cidades industriais (ABC e interior), expostos à poluição.

Nas comunidades rurais, intoxicadas por agrotóxicos.

Nos pescadores artesanais do litoral, que veem seus recursos se esgotarem.

Nas famílias de trabalhadores rurais sem terra, vivendo em condições precárias.

O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se conjuntamente, como ensina a Evangelii Gaudium. Essa degradação conjunta é particularmente cruel no estado:

Na região metropolitana, a poluição do ar causa milhares de mortes prematuras anualmente.

No interior, o uso intensivo de agrotóxicos contamina solos e águas.

No litoral, a poluição marinha ameaça a vida aquática.

Nas regiões de nascentes, a exploração predatória compromete o abastecimento hídrico estadual.

As crises hídricas periódicas, do colapso do Sistema Cantareira à escassez no interior, revelam a vulnerabilidade e a urgência de mudanças estruturais.

Fragmentação Social: Outra Face da Crise Ecológica

A crise ecológica paulista transcende os aspectos ambientais, manifestando-se também na fragmentação social que atinge grandes cidades e pequenos municípios:

Crescimento da violência urbana e rural.

Aplicação de novas formas de agressividade social.

Narcotráfico espalhando-se do centro às periferias, do urbano ao rural.

Consumo crescente de drogas entre jovens (metrópoles e interior).

Perda de identidade comunitária (bairros tradicionais da capital a comunidades rurais centenárias).

Estas realidades indicam que o crescimento econômico dos últimos séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso integral e melhoria da qualidade de vida para todos os paulistas.

Ecologia Integral: Uma Nova Forma de Evangelizar

Diante desta complexidade, a problemática ecológica não pode ser considerada marginal à evangelização. Tratar da ecologia integral é uma forma privilegiada de aproximação dos pobres em suas diversas manifestações: moradores de periferias, trabalhadores rurais sem terra, pequenos agricultores, pescadores artesanais, povos tradicionais, catadores de recicláveis.

Não se pode anunciar o Evangelho ignorando o grito da criação que ressoa por todo o estado, das nascentes da Mantiqueira às praias do litoral sul, dos campos de Ribeirão Preto às matas de Iguape.

O Papa Francisco oferece uma chave interpretativa fundamental: "a melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses".

A Necessidade de Conversão: Individual, Estrutural e Pastoral

A conversão fundamental a ser promovida em São Paulo é a passagem de uma mentalidade de dominação para uma espiritualidade de administração responsável; de uma lógica de exploração para uma ética de cuidado. Isso se aplica às decisões empresariais da capital, às práticas agrícolas do interior, às políticas municipais das cidades médias e às atividades econômicas do litoral.

Essa conversão deve ser individual, estrutural e pastoral. A Igreja no Estado de São Paulo, ao promover a Ecologia Integral, não a assume como um tema adicional, mas como uma nova forma de evangelizar, reconhecendo que "tudo está interligado" e que o cuidado com as pessoas é inseparável do cuidado com o ambiente.

Isso implica que toda ação pastoral (juvenil, familiar, social, litúrgica) deve incorporar a dimensão ecológica como elemento constitutivo, adaptando-se às especificidades regionais:

Grandes cidades: ênfase na justiça ambiental urbana.

Interior: promoção da agricultura sustentável e preservação de nascentes.

Litoral: defesa dos ecossistemas costeiros.

Regiões rurais: apoio à agricultura familiar e assentamentos sustentáveis.

A ecologia integral incide diretamente na solução dos problemas que afetam o estado e na humanização de seus cidadãos. Questões como a habitação digna, "questão central da ecologia humana" (Papa Francisco), manifestam-se de formas distintas, mas igualmente urgentes, nos cortiços, favelas, loteamentos irregulares, assentamentos rurais e áreas de gentrificação.

Insustentabilidade e a Urgência da Mudança

O ritmo de consumo, desperdício e alteração ambiental em São Paulo superou as possibilidades de sustentação. O estilo de vida atual, insustentável, só pode levar a catástrofes, como já ocorre periodicamente:

Enchentes (capital e interior).

Secas ameaçando o abastecimento hídrico.

Poluição do ar matando silenciosamente (Grande SP e cidades industriais).

Contaminação de solos e águas por agrotóxicos (áreas rurais).

Destruição de remanescentes de Mata Atlântica e Cerrado.

Essa realidade exige uma "conversão ecológica", como chama o Papa Francisco. Não se trata apenas de práticas sustentáveis em paróquias e dioceses, embora importantes. Trata-se de uma transformação radical:

Do olhar: para enxergar a diversidade e riqueza do estado.

Do coração: para sentir a dor da criação em suas manifestações regionais.

Das estruturas pastorais: para responder adequadamente aos desafios de cada território.

Diálogo, Colaboração e Ação Profética

Esta conversão leva necessariamente ao diálogo e colaboração com outras tradições religiosas presentes no estado. A crise ecológica oferece uma oportunidade única de trabalho conjunto com cristãos de outras denominações e membros de outras religiões, das grandes cidades aos pequenos municípios. Juntos, a eficácia na defesa da criação, promoção da justiça ambiental e educação para a sustentabilidade pode ser maior, adaptando ações às realidades locais.

Cidades inteligentes e sustentáveis, usando infraestrutura, inovação e tecnologia para diminuir consumo energético e emissões de CO2, representam esperança para metrópoles e cidades médias. Contudo, essa transição tecnológica deve ser acompanhada por transformação ética e espiritual, para não apenas modernizar instrumentos de dominação sobre a natureza.

Responsabilidades da Igreja em São Paulo

A liderança desta transformação no Estado de São Paulo implica responsabilidades claras:

Formação de Consciência: Educar sobre a urgência da questão ecológica em suas manifestações locais e regionais. Seminários devem incluir Ecologia Integral na formação presbiteral (considerando especificidades regionais). Cursos de formação permanente devem abordar implicações pastorais da Laudato Si para realidades urbanas, rurais e litorâneas. Catequese deve integrar a dimensão ecológica (considerando biomas e ecossistemas locais).

Conversão Estrutural: Tornar estruturas eclesiásticas modelos de sustentabilidade regionalmente adequados. Paróquias e dioceses (capital ao interior) devem migrar para energias renováveis, implementar gestão responsável de resíduos, promover transporte sustentável, realizar auditorias ecológicas. Em dioceses rurais, incentivar proprietários à agricultura sustentável e preservação ambiental.

Papel Profético: Ser voz dos sem voz nas questões ambientais estaduais. Acompanhar e influenciar políticas públicas ambientais (estaduais e municipais). Defender comunidades ameaçadas por projetos predatórios. Denunciar a desigualdade ambiental (cidades e campo). Promover alternativas econômicas solidárias e sustentáveis.

A Campanha da Fraternidade 2025 e Parcerias Estratégicas

A Campanha da Fraternidade de 2025 oferece uma oportunidade única para mobilizar toda a Igreja paulista em torno da Ecologia Integral. A ação não pode limitar-se ao âmbito eclesial. É preciso estabelecer parcerias estratégicas com universidades, ONGs, movimentos sociais e setores empresariais genuinamente comprometidos com a sustentabilidade, considerando especificidades e potencialidades regionais.

A magnitude dos desafios exige resposta articulada, transcendendo fronteiras confessionais e institucionais.

Esperança e Missão: Regenerar e Escolher o Bem

O Papa Francisco lembra que "os seres humanos, capazes de se degradarem ao extremo, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de qualquer condicionamento psicológico e social que lhes é imposto". Esta é a esperança e a missão: contribuir para que a humanidade, particularmente a população paulista, possa superar-se e regenerar-se, escolhendo um modelo de desenvolvimento verdadeiramente integral, que promova simultaneamente o bem das pessoas e o bem da criação em suas manifestações regionais.

O desenvolvimento de uma ecologia integral é tanto um chamado quanto um dever.

É um chamado a redescobrir a identidade de filhos e filhas do Pai Celeste, criados à imagem de Deus, administradores da terra, recriados por Cristo, santificados pelo Espírito Santo.

É um dever decorrente da responsabilidade pastoral e da solidariedade com futuras gerações.

Desafios Persistentes e a Responsabilidade Paulista

Este chamado torna-se mais urgente ao considerar que a Laudato Si', apesar de seus dez anos e da crescente consciência ecológica, ainda não conseguiu, como observa Anna Maria Tarantola (Fundação Centesimus Annus), "abrir uma brecha no mundo econômico" como deveria. O documento trouxe frutos na sensibilização (especialmente jovens) e contribuiu para a adoção dos ODS pela ONU, mas não impôs a mudança de paradigma necessária para superar o "modelo tecnocrático predominante".

Esta constatação não deve desanimar, mas motivar a redobrar esforços. A Igreja no Estado de São Paulo tem responsabilidade especial nesta transformação, pois o estado concentra não só os maiores problemas ecológicos do país, mas também grandes oportunidades de solução.

São Paulo é o centro financeiro, tecnológico e agrícola do Brasil. Muitas decisões que afetam o futuro ambiental da nação são tomadas aqui. Uma voz profética unida e bem fundamentada pode ter impacto significativo no estado e no país.

Conclusão: Um Compromisso Decisivo

É fundamental que o compromisso com a Ecologia Integral seja assumido de forma decisiva. É preciso buscar diretrizes claras e ações concretas para animar dioceses e paróquias a viverem a Campanha da Fraternidade de 2025 com profundidade e a integrarem a Laudato Si’ em toda a ação pastoral, buscando a iluminação e a força do Espírito Santo nesta missão urgente e necessária.

Dado em Itaicí, Indaiatuba, 87° Assembleia dos bispos do Regional Sul 1, 05/06/25.

Dia Mundial do Meio Ambiente.

Comentários